domingo, 20 de dezembro de 2009

09. Estado Teocrático do Guayrá

  09.1. A pretensão jesuítica na América do Sul
    
A Ordem [Religiosa] Inaciana ou Companhia de Jesus foi criada após a Reforma Protestante por Ignácio de Loyola em 1534, oficialmente em 1540 (Centro Apologético Cristão de Pesquisas - CACP), portanto no contexto da reação católica apostólica romana, conhecida como contrarreforma. 
À Santa Sé importava desde logo não só expandir o catolicismo, abalado pela reforma protestante na Europa, como também organizar um estado teocrático em terras americanas. A fundação da Ordem e a sua missão firmavam-se neste princípio, além da evangelização dos povos recém contatados pelas grandes descobertas, estava em conter o avanço protestante. 
A primeira leva de padres jesuítas chegaram à América do Sul, portuguesa e espanhola, por volta de 1549, quando o rei de Espanha iniciava o povoamento de brancos na Província Del Guayrá, o Paraná espanhol, como medida estratégica para conter as investidas portuguesas além Tordesilhas.
Um quartel de século após a pretendida fixação branca constatava-se, ali, um vazio gente civilizada com interesses em povoar e trabalhar aquele sertão, sem os atrativos do ouro ou riqueza fácil, a não ser a caça ao índio para escravização. Então permitiu-se o uso territorial pela Igreja, pensando-se originariamente em comunas religiosas sujeitas à coroa espanhola, porém com vida e direção espiritual ajustadas conforme mandamentos eclesiásticos.
Os padres jesuítas chegaram à região em 1576, com as patrulhas militares espanholas, em missões de reconhecimentos nos rios Iguaçu, Piquiri, Paranapanema e Tibagi, onde fundaram povoados, denominados de reduções, com finalidades em atrair, catequizar e educar índios para o trabalho. 
Com o beneplácito da Coroa espanhola viabilizaram-se, então, as primeiras reduções jesuíticas no Guayrá, ou o Paraná espanhol, onde o indígena livre não apenas entregava suas terras e riquezas à administração dos padres, como também capaz de produzir lucros e geração de impostos. Consta, por Maack, que "já em 1578-1579 foram radicados, só no distrito de Vila Rica [do Espírito Santo], 200 mil guaranis." (Maack, 2002: 70).
Há certa relutância em dizer livre o índio forçosamente reduzido, ou obrigado a se auto-reduzir para não cair em mãos de escravocratas. Padre Montoya justificou a ação jesuítica:
"(...) às reduções chamamos aos povoados dos índios, que vivendo à sua antiga usança, em matos, serras e vales, em escondidos arroios, em três, quatro ou seis casas apenas, separados uma, duas, três e mais léguas uns de outros, os reduziu a diligência dos padres a povoações grandes e a vida política e humana, a beneficiar algodão com que se vistam, porque comumente viviam em nudez, ainda sem cobrir o que a natureza ocultava" (Montoya, 1609/1675, apud Capistrano de Abreu).—
Por volta de 1588, quando alguns dos padres jesuítas – Manuel Ortega, Juan Saloni e Thomas Fields, em seus primeiros contatos com os nativos na região do norte e noroeste do atual estado do Paraná, "informaram aos seus superiores a existência de milhares de índios guaranis na região, bem como reconheceram uma série de peculiaridades culturais, sociais e políticas que seriam úteis alguns anos depois" (Noelli e Mota, 1999). 
Se bastante claras as pretensões da Igreja, nunca esteve bem certo o objetivo da coroa espanhola em atender as pretensões jesuíticas de um estado independente na Província de Guayrá, mas entendem os especialistas que o principal objetivo seria conter Portugal em avançar suas posições, com a fixação de seus homens o mais distante possível e nelas impor sua cultura, falar seu idioma, enfim, sabidamente entendido jamais Portugal e Espanha um só reino, como estavam, nem suas colônias uma só dominação.
Nestes considerandos, em 1608 o rei espanhol entregou aos jesuítas toda a Província do Guayrá, abrangendo partes da região norte e todo noroeste do atual estado do Paraná, sendo esse o início das atividades político-religiosas, onde "os conquistadores passaram a veicular os elementos básicos da sua cultura através dos padres jesuítas." (Noelli e Mota, 1999).
Guayrá jamais se tornou um estado independente, devendo obediência direta ao rei de Espanha e lhe pagar impostos, mas foram evidentes as pretensões jesuíticas de emancipação até pela rapidez com que os padres fundaram as primeiras reduções, com os índios, junto aos vales dos rios Paranapanema, Ivaí, Corumbataí, Piqueri, Iguaçu, Tibagi e Ribeira, deixando fortes suspeições históricas que a Companhia de Jesus já vinha agindo anos antes, a partir dos núcleos oficiais espanhóis de Ontiveros, Real Ciudad Del Guayrá, e Vila Rica Del Espiricto Santo, já existentes desde 1554 (Giovanneti, 1949: 84).
Para Maack, Ontiveros foi a primeira colônia espanhola no Alto Paraná [1554], a oeste do rio Paraná defronte a barra do Piquiri, desativada quando à margem sul da foz deste rio, fundou-se, em 1557, a redução que se tornou Ciudad Real Del Guayrá, nome que se estendeu para toda região entre os rios Paranapanema e Uruguai a 'Província Del Guayrá'. No ano de 1576 fundou-se Vila Rica Del Espiricto Santo, às margens do rio Ivaí nas proximidades da foz do Corumbataí (Maack, 2002: 69-70).
Deste modo, pelo menos desde 1608 já existiam algumas reduções jesuíticas na Província de Guayrá como cidades feitas, vindas outras a seguir, todas assinaladas no célebre mapa espanhol 'Paraquaria' (Padre Luis Ernot, 1632):
Guayrá as missões no  Paraná espanhol -esboço: adaptação da imagem 
em http://wibajucm.blogspot.com.br/
—Vale do Tibagi: São José, São Francisco Xavier, Encarnación e São Miguel.
—Às margens do rio Ivaí: Jesus Maria, Santo Antônio e São Paulo.
—Rio Corumbataí: São Tomas e a dos Sete Arcanjos.
Nas cabeceiras do rio Piquirí: São Pedro e Concepção.
—No médio Piquirí: Nossa Senhora de Copacabana.
—Rio Paranapanema: Nossa Senhora do Loreto, Santo Inácio e São Tomé [à barra do Tibagi], todos à margem esquerda, enquanto do lado paulista, margem direita, São Pedro nas proximidades de Santo Inácio e Loreto.
Dantas cita fixação jesuítica em terras hoje paulistas (Dantas, 1980: 22), na mesma época de Santo Inácio e Loreto, onde foram encontradas ruínas d’uma redução que, diz Bruno Giovannetti, chamava-se São Pedro (Giovannetti, 1949: 82), localidade e denominação ratificadas por Maack (2002: 71).
A redução São Pedro paulista foi transferida, posteriormente, para as cabeceiras do rio Piquiri, pois a Província del Guayrá, conforme concessão real, tinha por divisa natural o rio Paranapanema e não era de bom sentido desrespeitá-la.
Não é improvável tratar-se a São Pedro do Piquiri de localidade homônima, ou que tenha sido povoação levantada após destruição da primeira São Pedro, todavia faltam documentos para qualquer disposição final.
As reduções de Santo Inácio e Nossa Senhora Loreto são vistas, por muitos estudiosos, como modelos das demais missões jesuíticas fundadas entre 1610 a 1625 às margens daqueles rios, para depois adentrarem os atuais estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Segundo Capistrano de Abreu:
"Por 1610, jesuítas castelhanos partidos de Asunción começaram a missionar na margem oriental do Paraná. Fundaram Loreto e San Ignacio, no Paranapanema, e em compasso acelerado mais onze reduções no Tibagi, no Ivaí, no Corumbataí, no Iguaçu. Transposto o Uruguai, assentaram outras dez entre o Ijuí e o Ibicuí, outras seis nas terras dos Tape, em diversos tributários da lagoa dos Patos. De San Cristóbal e Jesús María, no rio Pardo [RS], poucas léguas os separavam agora do mar" (Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial: 58).
Jorge Junior (Um pouco de história... - 06/08/1967) refere-se a outras reduções nas vertentes do rio Ribeira, Iguaçu e Ivaí, na região hoje curitibana.
As facilidades de comunicações e transportes entre as reduções jesuíticas eram eficientes pelos seus muitos caminhos fluviais e terrestres, alguns destes unindo rios e outros destinos por terra, bastante conhecidos e assinalados em antigos mapas jesuíticos e espanhóis, descritos por Noelli e Mota:
"A comunicação das Reduções das margens do Paranapanema com as localizadas ao sul na região dos rios Corumbataí e Ivaí, ou vice-versa, podiam ser feitas subindo o rio Pirapó, até os ribeirões Maringá-Mandacaru, Morangueira ou Sarandi, e por estes chegar até o platô onde está Maringá, para descer pelos córregos Borba Gato, Cleópatra e Mascado até o ribeirão Pingüim e por este até o rio Ivaí, em direção à cidade espanhola de Vila Rica do Espírito Santo ou às Reduções do Ivaí e Corumbataí. Uma outra rota possível seria subir o rio Pirapó até suas cabeceiras no rio Dourados, até alcançar o platô onde está Mandaguari e descer pelo rio Keller até o Ivaí. Com toda certeza essas rotas eram conhecidas e utilizadas pelos índios e delas se aproveitaram os padres jesuítas nas suas andanças e pregações nas aldeias da região" (1999).
Assinala Jorge Junior (publicação de 06/08/1967), que Santo Inácio e Loreto, como prósperas comunas jesuíticas, se sustentavam das produções agropecuárias, de comércios e manufaturas, e nelas haviam escolas e eram ensinadas as artes de ofícios e profissões, como pedreiros, carpinteiros, oleiros, tecelões, professores e artesãos. Possuíam grandes lavouras de milho, arroz, feijão, mandioca, frutas e leguminosas, além do cultivo do algodão com que faziam seus vestidos.
O mesmo Jorge Junior naquela edição teve mais a relatar que "além das roças de cada família, havia as coletivas, cujo produto era armazenado para atender a necessidade de todos", sem dificuldades para entendimento de comércio interno e externo para os produtos excedentes; também eram prósperas em Santo Inácio e Loreto, as criações de gado bovino, suíno, caprino, ovino e galináceo.
Eram cidades planejadas, divididas em quadras cujas ruas, umas e outras, davam para praças centrais, quadradas ou retangulares, situadas nos centros das povoações; nas praças se encontravam as casas dos padres, as escolas, as oficinas e as igrejas, de tal magnitude que próprio governador do Paraguai, Luiz Céspedes y Xeria, quando em visita àqueles povoados de Santo Inácio e Loreto, muito se impressionou com as "hermosisimas Iglesias, que no las visto mejores em las Índias que he corrido del Peru y Chile" (Apud Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial, IX: 58). 
A despeito dessa arquitetura quase uniforme para os primeiros centros urbanos jesuíticos, conforme apologéticas descrições, há que se observar o caráter incipiente dessas primeiras construções, onde o predomínio duma tecnologia mais próxima das construções guaranis, cujas casas, construída de taipa, apenas cobertas de telhas de barro cozido, divididas em compartimentos de madeira, onde se alojavam as famílias. Eram edificações frágeis tanto que delas, afora as pilhagens de cacos de telhas e cerâmicas, tecnicamente quase nenhum outro vestígio. 
Os reduzidos eram instruídos como pedreiros, marceneiros, oleiros, carpinteiros, e muitos tornaram-se hábeis artesãos. Jorge Junior, sem nenhuma menção, fundamentou seus estudos em Del Sampaio, para descrever que doze mil pessoas moravam nas localidades de Loreto e Santo Inácio, em 1628, quando São Paulo - a título comparativo tinha apenas dois mil e quinhentos habitantes.
Algumas outras localidades jesuíticas no Paranapanema, afluentes e subafluentes, tinham base e paiol militar, conforme observado nas defesas dos reduzidos ante as ameaças bandeirantes, algumas vezes repelidas. Tais reduções não contavam apenas com missionários e índios, pois nelas também grupos militares, justificados para conter o expansionismo territorial luso-brasílico de partes das terras espanholas não exploradas, entre os rios Paraná, Paranapanema, Tibagi e além Piquiri, tendo os índios por aliados numa troca mútua de defesa e proteção.
Jesus Maria era uma cidade militar com quartel, campos de treinamentos e depósitos de armas, ao mesmo nível de Vila Rica do Espírito Santo, e as demais povoações também tinham sentinelas avançadas e se defendiam diante do agressor, como bem entenderam os preadores que, antes da bandeira de Raposo Tavares, "haviam tentado, sem êxito, apossar-se dos convertidos das reduções" (Silva e Penna, 1967: 128 - notas).
Maack relata que desde o princípio formador das pretensões para algum estado teocrático, "Patrulhas militares espanholas e jesuítas começaram a subir os rios Iguaçu, Piqueri, Paranapanema [Paraquario] e Tibagi e fundaram povoados, denominados reduções, onde os índios das vastas regiões eram catequizados e educados para o trabalho" (Maack, 2002: 70).
A catequese jesuítica, portanto, jamais foi apenas traduzir orações cristãs do latim para a língua guarani, ou o ensino de ofícios e trabalhos da terra, nem nas belas construções ou em uma nova sociedade de apenas paz, pois que das arremetidas dos bandeirantes contra as reduções, nunca encontraram índios e padres indefesos e sim a bravura daqueles que defendiam e atacavam por seus interesses (Folha de São Paulo, Acervo... 1935). 
Sob todos os aspectos, portanto, o desenvolvimento, a organização social, política, econômica e territorial de Guayrá apontavam para objetivo de um Estado Teocrático Independente, com limites geográficos estrategicamente intrometidos dentro da esfera de interesses expansionistas de portugueses e espanhóis, situação que em nada interessava a nenhum dos dois povos.
Foi assim que Manuel Preto e outros bandeirantes, além dos 'encomienderos castelhanos', todos rechaçados anteriormente de Guayrá, ou com êxitos parciais, insistiram invadir o estado em formação, para lhe roubar os índios e destruir suas cidades. Preto, com maior empenho nos anos 1618 e 1623, até que em 1628, juntamente com o jovem Raposo Tavares veio montar um grande e bem preparado contingente para a guerra final, dividido em diversas frentes e postas estacionadas, ameaçadoramente, diante das principais reduções, razões que teriam levado o Padre Cristóbal de Mendoza, da missão de São Miguel, perplexo a indagar das razões daquela guerra, para receber de Raposo Tavares a célebre que entrou para o anedotário histgórico: "Viemos aqui para expeli-los desta região inteira, porque esta terra é nossa e não do rei de Espanha". 
A interiorização tão distante das reduções seria, portanto, para dificultar invasões de sertanistas e desbravadores espanhóis e portugueses que buscavam índios pacificados e convertidos, como os melhores para a escravidão. Os apresadores optavam por índios mansos e iniciados nas artes e ofícios pelo seu alto valor no mercado escravagista.

09.2. Raposo Tavares - o bandeirante que caçava índios e odiava os padres

Dos acontecimentos históricos polêmicos têm-se por paixões atribuir fatos e feitos a pessoas, grupos ou raças igualmente contestadoras, a partir de um único ou menor indício.

É o caso na História do Brasil, como num sentimento de aversão pela oficialidade, muitos acreditam tenha ela sido diferente da didática imposta, que até daria uma obra paralela 'A História que a História não Conta ou que não contou’.

Assim Pedro Álvares Cabral, teria vindo ao Brasil não acidentalmente ou apenas pela Coroa Portuguesa, mas a serviço de seu sogro o judeu Fernão de Loronha ou Fernão [Fernando] de Noronha, interessado em explorar o comércio do pau-brasil em terras portuguesas de além-mar.

—Segundo Guimarães (Volume III: 63), o descobridor Pedro Alvares Cabral, filho de Dom Fernando [Fernão] Cabral e Isabel Gouveia de Queirós, casado com Isabel de Castro, filha de Constança e Dom Fernando de Noronha [Fernão de Loronha].

Em 1501 o monopólio do pau-brasil foi arrendado a Fernão de Noronha, judeu ligado por interesses comerciais a outros capitalistas do mesmo grupo étnico, conforme historiadores. Óbvio que tão poucos dias no Brasil e apenas na costa litorânea, Cabral não teria tempo nem condições para algum preciso relatório, mas teria vindo obter informações de degredados, segundo consta, daqueles judeus postos na Insula Brasil, um, dois ou mais anos antes, como Francisco de Chaves, João Ramalho, Diogo Álvares e Mestre Cosme Fernandes Pessoa, este último também maçom e sério problema para a Igreja.

Se os primeiros portugueses no Brasil eram judeus, presumíveis que vieram degredados depois de alguma negociação para salvarem-se da Inquisição. Quase todos os judeus portugueses não ricos, cristãos novos ou não, tiveram sérios problemas com a Inquisição promovida pela Igreja Católica e o Estado.

Antonio Raposo Tavares teria sido um deles. Nascido em Portugal em 1598, filho de Fernão Vieira Tavares e Francisca Pinheiro da Costa Bravo, órfão de mãe desde cedo, Maria da Costa tornou-se sua madrasta.

A História não diz oficialmente que Raposo Tavares era judeu, mas documentos indicam sua mãe e madrasta judias, portanto, ele foi criado num ambiente onde certamente sentiu as dificuldades e as agruras do antissemitismo, o preconceito racial, o temor da Inquisição e o estigma de assassino do filho de Deus.

O articulista Mário César Carvalho nota que a historiadora Anita Waingort Novinsky, professora de pós-graduação na USP, "reuniu documentos encontrados em Portugal segundo os quais Raposo Tavares teria razões religiosas para queimar igrejas: sua madrasta, Maria da Costa, foi presa pela Inquisição em 1618 sob a acusação de e só saiu do cárcere seis anos depois." (Cesar Carvalho, publicação Folha de São Paulo, edição de 05 de setembro de 2004 - Bandeirantes tinham origem judaica). 

César Carvalho argumenta que "Raposo Tavares foi criado até os 18 anos na casa da madrasta, uma cristã nova que seguia a tradição religiosa como, na definição de Novinsky. A mãe de Raposo Tavares também era cristã nova". Mãe e madrasta em que pelo menos a última teve problemas com a Inquisição, evidente que se pode traçar perfil psicológico, moral e de conduta pessoal de Raposo Tavares em relação à Igreja, nas pessoas de seus representantes mais imediatos, os padres e as obras destes.

Raposo Tavares, tão logo presa a madrasta, teria vindo ao Brasil, ainda em 1618, acompanhando o pai que tinha obrigações de representar o donatário Dom Álvaro Pires de Castro e Sousa, o Conde, depois Marquês, de Monsanto, nas Capitanias de Itamaracá, Santo Amaro e Santana. Monsanto, bisneto de Pero Lopes de Sousa [irmão de Martim Afonso de Souza] - o primeiro donatário daquelas fracassadas capitanias, ensejou resgatá-las através de Fernão Vieira Tavares, vindo apropriar-se indevidamente também das terras da Capitania de São Vicente, por erro de demarcação, propositada ou não, onde fixou sede em 1618, ainda que área litigável.

A Capitania de São Vicente de 1587 a 1610 teve como último donatário Lopo de Souza, filho de Pero Lopes de Souza, filho de Martim Afonso de Souza e homônimo de seu tio paterno. Pela interrupção a partir de 1610 ou por presumível ausência de interesse hereditário, o Conde Monsanto certamente dela se apropriou em 1618, pelo seu representante legal Fernão Vieira Tavares, até que Mariana de Sousa Guerra, Condessa de Vimieiro, filha de Lopo de Souza [tio], reivindicou seus direitos de donatária e, como tal, historicamente reconhecida entre 1621 a 1624, apesar do litígio familiar, quando resolveu pela transferência da sede de sua Capitania de S. Vicente para Itanhaém. 

Durante o período de ausência donatária a Capitania foi governada diretamente por capitães-mores e durante a concomitância foram nomeados dois Capitães-Mores, distintos por donatário, com jurisdição na mesma área territorial, até a prevalência de Dom Álvaro.

Apesar da imprecisão dos documentos, a partir de 1610 a Capitania de São Vicente foi invadida pelos espanhóis de Iguape [litoral sul de São Paulo], por abandono - nada relacionado com a 'Guerra de Iguape' de 1532, caindo novamente no ostracismo ao mesmo tempo em que prosperava as vilas de Santos e São Paulo.

A tomada das terras da Capitania de São Vicente por Conde Monsanto incluía as vilas de São Paulo, Santos e São Vicente, e a esta última deu vigor.

Fernão Vieira Tavares assumiu controle da Capitania de São Vicente e das demais, com o filho Raposo ao lado, exercendo um governo bastante austero através de Capitães-Mores. O próprio Fernão veio ocupar a função de capitão-mor por um período em 1622, ano em que Raposo Tavares casou-se com a filha do bandeirante Manuel Pires, Beatriz Furtado de Mendonça com quem teve dois descendentes, vindo após enviuvar-se.

Depois de dez anos de viuvez, Raposo contraiu matrimônio com a viúva Lucrecia Leme Borges de Cerqueira, mãe de oito filhos, e deste consórcio nasceu-lhes uma única filha. Lucrecia Borges era nascida do bandeirante Fernão Dias Pais, e tia do célebre caçador de esmeraldas, Fernão Dias Paes Leme. Desde a chegada ao Brasil a vida de Raposo vinculou-se aos bandeirantes e à administração política, daí seu aprendizado com as cousas e causas da colônia portuguesa.

Em 1628, Raposo Tavares fez parte da expedição que destruiu Guayrá, sendo durante esta campanha que ele teria avocado sua autoridade no Pentateuco [bíblico] ou, mais propriamente na Lei de Moisés para seus atos de conquistas, conforme Francisco Vasques Trujillo numa carta de 1631 (César Carvalho), portanto uma prova que ele era judeu para muitos estudiosos.

Para o historiador Cortesão, Raposo Tavares, o mais temível dos bandeirantes, era judeu cristão novo e tivera problemas com a Inquisição (Cortesão, 1958), como também eram judeus feitos cristãos novos, Mestre Cosme Fernandes Pessoa, João Ramalho, Brás Leme, Fernão Dias Paes [Leme], Baltazar Fernandes, Diogo Álvares Correa [Caramuru], Francisco de Chaves e outros tantos preadores de índios dos séculos XVI e XVII.

Anita Waingort Novinsky acredita que "Há razões ideológicas na fúria dos bandeirantes contra a igreja. Ela representava a força que tinha destruído suas vidas e confiscado seus bens em Portugal (...) e Raposo Tavares matou jesuítas porque eles eram comissários da Inquisição na América" (César Carvalho, op.cit).

Outros pressupostos deixam entender que Fernão Vieira Tavares, o pai de Raposo Tavares, também era judeu e que saiu de Portugal por Dom Luiz Álvares de Castro e Souza, tanto como seu representante em Brasil, para apossamento da Capitania de São Vicente e aquelas em que era real donatário, quanto para que demais membros da família Tavares não tivessem o mesmo destino de Maria da Costa.

Mas, nada se pode presumir onde permanece a ausência de documentos, ficando assim a incógnita porque a família Tavares deixou Portugal tão logo da prisão de dona Maria da Costa, ou se a família pode enfim se reunir após sua libertação.

Raposo, com razões para odiar o Clero, em 1628 achava-se à frente de uma coluna militar, na redução São Miguel, com pretensões em expulsar os jesuítas do Guayrá e destruir as Missões, por considerar portuguesas as terras e não espanholas ou da Igreja.

 

09.3. Traição à causa jesuítica pelo então governador paraguaio

Em Guayrá a intenção primeira dos bandeirantes paulistas era a captura do índio, para mão de obra escrava, e não objetivos de expansão territorial brasileira, a qual somente viria a partir de 1618, já durante a dominação espanhola pela União Ibérica, quando aquela região se encontrava sob governo jesuíta com forças para formação de um estado teocrático livre e independente.

O desenvolvimento de Guayrá, tanto populacional quanto de progresso, destacava-se sobremaneira das demais províncias sul-americanas, mormente vistas em relatórios como os de Del Sampaio ao rei de Espanha, que mostram a atividade jesuítica grandiosa não somente pela religiosidade pretendida, mas pela capacidade pedagógica de educar o índio em sua própria língua, ensiná-lo desenvolver diversos ofícios [tecelagem artesanais, olarias, construções e outras modalidades], aproveitando os recursos naturais para trabalhar a terra, cuidar das atividades de sustentos agropastoris incluindo os hortifrutigranjeiros, além do incentivo às oportunidades para o desenvolvimento de habilidades ou revelar gênios criativos.

Os jesuítas desejavam para Guayrá forma de governo social-teológico militar, com competências administrativas, legislativas, judiciária e de defesa territorial, posto inconcebível na época algum governo sem sustentação militar, metido entre as duas coroas que disputavam terras e tinham interesses por riquezas e, sobretudo, a mão de obra indígena. É de conhecimento histórico que Vila Rica de Espírito Santo tratava-se de cidade militar, igualmente à redução Jesus Maria, também voltada para os ofícios militares de treinamentos, formações e depósitos de armas e munições, características bastante próprias de sentinela militar avançada.

Considerando Guayrá por Estado ainda em formação, uma situação talvez não prevista pelos idealizadores estivesse na sua interiorização, a lhe impedir acesso oceânico direto, vez que seus caminhos terrestres dependiam de Portugal e os fluviais de Espanha, pelo rio da Prata, tornando-o isolado e extremamente dependente.

Outra situação negativa diz respeito em manter uma população quase exclusivamente indígena, peças por demais tentadoras para as bandeiras de apresamentos e os 'encomienderos', especialmente a partir de 1624, quando a Holanda atacou a Bahia e passou a dificultar a vinda de escravos africanos para o Brasil.

Os índios aldeados tinham maiores valores como escravos porque doutrinados que o sofrimento terrestre lhe era a garantia de paraíso celeste.

—"Não se imagina presa mais tentadora para caçadores de escravos. Por que aventurar-se a terras desvairadas, entre gente boçal e rara, falando línguas travadas e incompreensíveis, se perto demoravam aldeamentos numerosos, iniciados na arte da paz, afeitos ao jugo da autoridade, doutrinados no abanheén?" (Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial: 58).

Desde as primeiras formações jesuíticas, antecedentes à própria oficialidade das missões, os espanhóis e portugueses intentaram contra os aldeamentos, que se mostravam 'viveiros de bons cativáveis' (Silva e Penna), e a eles iam os preadores de acordo com as observações de historiadores didáticos os quais afirmam fracassadas algumas das tentativas em apossamentos no Guayrá, anteriores ao ano de 1628, repelidas a fogo pelos comandos militares a serviços dos jesuítas, por vezes a se anteciparem aos inimigos antes que estes se aproximassem das reduções.

Dos fracassos colecionados pelas arremetidas bandeirantes contra as reduções jesuíticas do Guayrá, principalmente em 1618 e 1623, entenderam os cabecilhas de entradas e bandeiras que as sustentações dos aldeamentos estavam nas armas e na cobertura dada por frentes do exército paraguaio deslocadas para tais objetivos.

Para a retirada de tais armas e tornar fácil o alvo pretendido, os luso-brasílicos precisavam da conivência de pessoas do governo de Assunção, que lhes dessem mapas da região - das vias de comunicações, do número de aldeados e das capacidades de resistências. Igualmente era preciso uma pessoa com autoridade sobre os militares para remover as frentes que protegiam estrategicamente os reduzidos, além do recolhimento compulsório de armas e munições em poder dos missionários.

Capistrano de Abreu informa: "Isto conseguiram em fins de 1628, e muito concorreu para assegurá-la Luís Céspedes y Xeria, governador do Paraguai, casado em família fluminense, senhor de engenho no Rio".

Dom Luis, viúvo, viera de Espanha, em 1626, para assumir o governo do Paraguai [nomeado em 1625], com passagem pelo Rio de Janeiro onde se casou com Vitória Correa [Correia] de Sá, filha do riquíssimo Gonçalo Correia de Sá e sobrinha de Martim de Sá, governador do Rio de Janeiro (1602-1608 e 1623-1632), recebendo como dote alguns engenhos de açúcar. Assumindo governo do Paraguai em 1626, Dom Luis foi nomeado para o cargo em 1625 (Vilardaga, 2008: 11).

Desde logo no governo paraguaio Dom Luis mostrou-se contrário ao Estado Independente do Guayrá, em mãos dos jesuítas, ocupante de importantes e ricas regiões hidrográficas no Paraná espanhol. Havia por parte de Dom Luis, também, o temor de uma nação guarani organizada e poderosa.

Certamente considerações assim fizeram o governador paraguaio simpatizar-se à causa bandeirante, de destruição de Guayrá e o aprisionamento do índio reduzido para mão de obra escrava aos senhores de engenho.

Já não restam dúvidas que Dom Luis e os bandeirantes estavam intentados num mesmo propósito:

—"(...) pois era notória a sua aversão aos jesuítas e largamente sabido que se entregava ao comércio de escravos, segundo se verifica no processo, ou melhor, na 'información' realizada pelo padre Francisco Vasquez Trujillo, provincial da Companhia de Jesus, em fevereiro de 1631, para provar ao rei de Espanha o quanto era maléfica, à coroa de Castela, a ação do governador do Paraguai que, ainda por cima, era casado com uma brasileira e possuía um engenho no Rio de Janeiro" (Barreto, c. 1948).

Se enredado ou não pelos jesuítas à coroa espanhola, quanto suas ações e pretensões pró a invasão do Guayrá, Dom Luis esteve em Madri, em princípio de 1628, onde discutiu-se a questão, inclusive "com o rei da Espanha, Felipe IV, tendo se dirigido ao governador do Paraguai, para que houvesse intervenção nas invasões." (Moura, 1988: 51).

Ao retornar de Espanha, no mesmo ano de 1628, Dom Luis desembarcou em São Vicente, com passagem pelo Rio de Janeiro, aproveitando oportunidade para manter contatos com os principais de São Vicente e de São Paulo, e "faz crer que viera comparticipar dos resultados da grande empresa predatória que Manuel Preto e Antônio Raposo Tavares preparavam, para arrasar os grandes aldeamentos guaranis que os jesuítas espanhóis mantinham ao sul do rio Paranapanema" (Taunay, Ensaios Paulistas, 1958).

Reinhard Maack afirma que "veio a São Paulo o governador do Paraguai tomando conhecimento da intenção [do ataque a Guayrá]. Entretanto, D. Luis Céspedes, ao invés de prevenir os jesuítas, fez um pacto com os bandeirantes e impediu toda possibilidade de defesa por parte dos jesuítas." (Maack, 2002: 72).

São diversas as especulações das causas da traição do governador paraguaio, correndo versões que a mulher de D. Luis havia permanecido no Brasil, quando da sua viagem à Espanha, sendo ela vítima de sequestro e somente libertada após se negociar a traição de Guayrá. "Outros diziam que Don Luis nada podia fazer, já que sua mulher estava no Brasil" (Expedições Bandeirantes).

Certamente o sequestro da esposa do governador e a retenção dele em São Paulo, com toda a comitiva, tenham sido caso pensado.

—"Pouco depois (a população paulista sempre exaltada), passa pela vila, vindo do Rio de Janeiro, o governador do Paraguai dom Luís de Céspedes Xéria, que se destina a Assunção. Na Câmara, um edil quer saber se Céspedes Xéria tem autorização legal para trilhar a rota em que vinha, pois se tratava de caminho proibido. (O jesuíta Charlevoix afirma que não a possuía). O certo, contudo, é que, após um mês de estadia em São Paulo, parte o governador" (Barreto, 2007).

Dom Luis não apresentara autorização real para transitar pela Peabiru, por isso estava impedido de prosseguir viagem e, detido no Brasil, então a iniciar uma maratona por terras paulistas, passando por Barueri, Santana de Parnaíba, entre outras localidades, antes de chegar a Araritaguaba, hoje Porto Feliz. Portugal e colônias estavam sob dominação filipina, razões pela qual a estranheza de se deter o governador paraguaio em trânsito pelas terras que eram, de direito, pertencentes à Espanha.

Dessa peregrinação, a demora e maneira como realizada a viagem, assim como as ordens imediatas de Dom Luis, aos seus assistentes para a desmilitarização das reduções e o recolhimento compulsório de armas e munições, fizeram com que os jesuítas inimizassem contra ele e, posteriormente, lhe atribuíssem as responsabilidades pela destruição do Guayrá.

Seja por qual razão, Dom Luis e auxiliares ficaram sob escolta de homens da confiança de Manoel Preto e Raposo Tavares, impedidos de retorno imediato ao Paraguai, a fim que ficasse bem clara as intenções colaboracionistas do governador.

Em Araritaguaba, Dom Luis e comitiva permaneceram por mais de um mês, enquanto consolidavam-se os diferentes rumores da traição e o apontar ânimo dos bandeirantes em formar exército fortemente armados com novecentos mamelucos e mais dois mil e duzentos índios guerreiros para o ataque à "Província Del Guayrá" (História do Brasil - Expansão Territorial Brasileira).

Somente três meses após a entrada em São Vicente, Dom Luis chegou enfim a Santo Inácio, no Guayrá, à margem esquerda do Paranapanema ao sul. Confirmada as providências de desmilitarização e o recolhimento das armas, fez-se chegar notícia aos líderes bandeirantes, para as elaborações finais do plano de guerra em quatro frentes comandadas por Pedro Vaz de Barros, Brás Leme, Antonio Fernandes e o próprio Raposo Tavares, todos sob ordens do velho Manuel Preto.

É dito que D. Luis, ainda sob escolta paulista, partiu de Loreto para Assunção [Paraguai]: "Fez por terra a viagem para seu governo; e fez sinal aos bandeirantes para avançarem" - escreveu Capistrano, e só aí os paulistas partiram, em relativa segurança, para a guerra. 

A mulher de Dom Luis chegou a Assunção em 1629, por mãos de André Fernandes:

—"(...) uno de los maiores piratas que vieron a sertan y mas cruel matador de yndios el qual despues de aver destruydo y assolado la Reducion de S. Pablo y llevado gran numero de al Bracil vino y truxo hasta el Paraguay a doña Victoria mujer del dicho governador con otros portuguezes (...)" (Annaes do Museu Paulista, vol. 11, documentação hespanhola: 320).

Raposo e sua coluna entraram em território inimigo pelo vale do rio Ribeira, enquanto os demais grupos seguiram cursos diferentes para o cerco planejado às primeiras reduções.

Aos 08 de setembro de 1628, a tropa chefiada por Pedroso de Barros, firmou-se defronte a missão jesuítica de Encarnação [Encarnacion] às margens do Tibagi, enquanto as outras colunas se colocaram estrategicamente pelos caminhos ou vias de comunicações, próximas de cada uma das reduções, para evitar ao máximo que os habitantes se comunicassem sobre as posições inimigas.

Em dezembro tudo estava pronto para o grande ataque, a bastar apenas que os bandeirantes deixassem fugir alguns índios escravos e estes buscassem proteção junto à redução de Santo Antonio, às margens do rio Ivaí. Trama executada e os padres acolheram os fugitivos, não os liberando para os donos e com isso a motivação desejada para a guerra; foi o princípio do ataque.

Sobre tal assunto, sem contender méritos, do Banco de Dados Folha observa-se, no texto extraído, que as lutas entre reduzidos e bandeirantes não eram simplesmente de um atacar com armamentos eficientes e outro se defender com pedaços de paus: —"Incidem num juizo falso e absurdo, todos quantos suppõem que, nas suas arremettidas contra as reducções, fossem os bandeirantes encontrar, sempre, indios inoffensivos e missionarios inermes. Tanto isso não é verdade que, em innumeros documentos escriptos pelo punho dos proprios jesuitas, se constata, a todo passo, a bravura com que elles se defendiam e, muitas vezes, atacavam. Numa carta dirigida em 12 de novembro de 1648, ao governador do Paraguay pelo padre Justo Mansilla, escrevia este: 'Ihs - Senor governador. Sabado y noviembro 7 dieram los nuestros assalto al enemigo en su real que era el puesto en donde, el ano passado, por otra invasion del mismo enemigo, se avia retirado la segunda reducion y sacaran al Padre xpl de arennas, a quien el enemigo tenia preso y con guardas de dia y de noche e dias avia, y mataram a seys o sete Portugeses a pelotassos, y algunos Tupis, con mucho animo y brio'. Mas não era sempre que as reducções atacavam os paulistas, matando-os a pelotaços, com 'mucho animo y brio'. Defendiam-se, tambem, com armas de fogo e eu acho que tolos seriam elles se são o fizessem. No assalto a uma das villas do Paraguay, segundo relata o capitão Domingos Gonzales a Sebastian Solorçano, secretario da Casa de Contratação de Sevilha, foram mortos 140 paulistas. Como se vê, os bandeirantes não investiam contra gente inerme. As reducções viviam, aliás, em constantes questões com as autoridades hespanholas, quer do Paraguay, quer do vice-reino do Prata e mesmo da Côrte. Na documentação colhida no enorme acervo do 'Archivo General de Indias', em Sevilha, carinhosamente colligidas nos 'Annaes' do Museu Paulista, é constante, insistente mesmo, o encontro de cartas vindas da Côrte, e dirigidas às reducções que se esparramavam pelas regiões do Guayrá, Tape e Uruguay, pedindo-se a devolução de armas e munições. Num desses documentos pede-se ao provincial ibero que 'todas las armas que esa Religion tenia em las doctrinas de ellas y las que huviesse repartido a los indios de que se conponen, se la entregassen para que estuviessen a disposición de esa Religion, ni se entrometiesen los religiosos a exercitar los yndios en lo manejo dellas ni en los allardes otra acion politica ni militar'." (Folha de São Paulo - in Folha da Manhã, O famoso Banditismo dos Bandeirantes, 24/11/1935).

Na 'Guerra de 1628 contra o Guayrá'  ocorreu verdadeiro holocausto, pelo qual D. Luiz foi formalmente acusado pela Companhia de Jesus a de traição à coroa espanhola, de casar-se com uma brasileira, de aliar-se à bandeira paulista para a destruição do Guayrá e aprisionar indígenas para os seus engenhos no Rio de Janeiro.

Dom Luis Céspedes y Xeria foi preso em 1631 e, cinco anos depois, condenado, todavia não cumpriu pena integral pelo prestígio do aparentado Salvador Correia de Sá Benevides, governador do Rio de Janeiro no período de 1637/1642, recolhendo-se numa de suas propriedades fluminenses onde veio a falecer.

 

09.4. Uma guerra insana e a destruição do Guayrá

 São diversas as motivações para a 'Guerra do Guayrá', todas discutíveis, como a escravização indígena, a expansão territorial luso-brasílica ou o ultranacionalismo português para a restauração de seu trono - então sob domínio espanhol, sem desconsiderar a pendenga religiosa entre os judeus bandeirantes e os padres jesuítas, com suas implicações de causas e consequências.

Talvez o princípio mais correto esteja na vocação interiorana paulista, pela geografia separatista entre o litoral e o Planalto Piratininga, pela Serra do Mar, depois pelas facilidades dos cursos fluviais do Tietê para o rio Paraná, do rio Paraíba do Sul, além da via terrestre Peabiru a conduzir para o Vale Paranapanema, todas as citações por caminhos das primeiras expedições e bandeiras rumo ao sertão.

A atenção dos conquistadores europeus, em território paulista, sempre esteve voltada para o encontro de metais preciosos, daí certamente as primeiras interiorizações que, "à falta do ouro, cativavam índios, que traziam para o litoral." (Tapajós, 1963: 90), como mão de obra escrava destinada ao trabalho nos engenhos, nas fazendas agrícolas que se formavam e, também, para o tráfico escravo com outros pontos da América do Sul, ou mesmo do mercado europeu.

Diego de Garcia de Morguer, Texto de Memória, narra que em 1528 o "(...) Bacharel [de Cananéia] com seus genros fizeram comigo [o próprio Diego Garcia] um contrato de fretamento para que trouxesse a Espanha com a nau grande oitocentos escravos, e eu o fiz com o acordo de todos meus oficiais (...)." (Enciclopédia Simpózio / Universidade Federal de Santa Catarina, CD: A/A).

Prear índios para o escravismo sempre foi bom e lucrativo ofício nas descobertas terras de Portugal, desde a oficialidade do Brasil, afinal os novos senhores precisavam de homens para trabalhar a terra e gerar-lhes lucros, além de formar contingentes de defesas contra inimigos.

A colonização e prosperidade paulista tiveram por dependência a mão de obra indígena, de menor custo e maior quantidade, embora didáticos quase sempre afirmem que os índios não se prestavam aos serviços nem se adaptavam ao cativeiro, porque habituados à vida livre além da baixa resistência às doenças que os matavam aos magotes.

Tudo o que se tem da escravização indígena no Brasil, "O saldo é a captura de um grande contingente de indígenas a serem vendidos, sendo que (...) tiveram um papel fundamental na implantação da empresa açucareira, contradizendo, portanto, o velho argumento de que o índio era inapto ao trabalho agrícola devido à sua indolência." (Digital Master - Enciclopédia online, 2005). 

Nem por isto a descartar a opção pelo escravo negro, muito mais caro que o nativo, todavia essa preferência já não se fundamenta que este melhor ou pior trabalhador que aquele, ou mais dócil, ou menos propenso às enfermidades, estando o diferencial entre o indígena e o negro na parentela do índio que residia nas matas e era sempre uma ameaça de vingança ou de libertação. E se algum índio escravo, isoladamente ou em grupo, viesse fugir, mais fácil misturar-se aos que viviam em liberdade, porque conhecia a selva e seus habitantes, enquanto os negros estavam num ambiente totalmente desfavorável, por desconhecer a região e a língua, além da cor a denunciá-lo sempre.

Também não se descarta que a opção escravista pelo negro parece mais uma questão do emocional/espiritual; os brancos adquirentes não viam e por isso não sentiam, aliás, nem sabiam dos negros capturados na África, se muitos morriam ou não depois de aprisionados, por suicídios ou doenças oportunistas para as quais sem imunidades. Igualmente os senhores desconheciam se os negros, à semelhança dos índios com o mesmo destino, antes de presos matavam ou não os filhos, às vezes mulheres, para que tais não fossem apanhados e feitos escravos.

A História, pelos didáticos, relata que, em meado do século XVI, índios acuados pelos preadores nos arredores de Buenos Aires [Argentina] mataram esposas e filhos, lançando-se depois para a morte, do alto de alguns rochedos, para não se fazerem escravos.

O escravo negro custava caro e só os grandes senhores, mais assentados no litoral do nordeste brasileiro, tinham condições compensadoras de compras, ficando o índio por espécie de reserva de mão de obra, quando lhes viesse faltar o negro. Por conseguinte, não podiam escravizar muitos nativos para que o estoque pudesse ser naturalmente reposto, entre os próprios silvícolas, sempre às mãos quando necessários.

No início do século XVII, com Portugal sob domínio espanhol, a Holanda investiu no comércio de mão-de-obra africana e desorganizou o tráfico português, fazendo diminuir o fluxo de escravos negros para algumas regiões da colônia, com isso a renascer o interesse pela escravização do indígena (História do Brasil, Expansão Territorial).

O tráfico negreiro agravou-se partir de 1624 quando os holandeses, em guerra com a Espanha pela sua libertação, atacavam colônias espanholas [e portuguesas, por extensão de coroa unificada], para dificultar o tráfico de escravos africanos.

A Holanda monopolizou a vinda de africanos para o Brasil, trazendo escravos apenas aonde seus interesses, no denominado nordeste holandês, mesmo que por tempo transitório. A ação holandesa foi desastrosa à economia colonial e reinol de Portugal, necessitando os senhores de engenhos e fazendeiros de mão de obra urgente, para acudir a lavoura e dar enfrentamento ao inimigo invasor, o que fez sobrevalorizar o preço do escravo indígena e com isso o incremento para sua captura.

Naquela época o Guayrá contava em parte do Vale Paranapanema [paranaense] e contiguidade, com população aldeada de aproximadamente cem mil índios [há números que indicam duzentos mil] cobiçados para a escravidão, quando a Bahia, São Vicente e outras localidades estavam dispostas pagar bem por peça que lhes fosse entregue. O escravo indígena que antes custava cinco vezes menos que o africano, teve elevação nos preços para igual ou maior, se o índio fosse aldeado, o que significava trabalhador adestrado para a agricultura e outros ofícios.

A Bahia pediu socorro e a Câmara Municipal da Vila de São Paulo e a de São Vicente requereu os préstimos de Raposo Tavares, para guerrear e aprisionar indígenas para fins de escravização e com isso salvar a economia colonial, "por esta a terra pobre, sem escravaria e hostilidade pelos selvagens", de acordo com registro oficial em livro ata daquelas municipalidades. Os espanhóis, principalmente de Buenos Aires e Assunção, da mesma forma desejavam os índios como escravos em suas propriedades, dispostos pagar bem.

Óbvio, com a ação jesuítica junto às reduções, praticamente inibia-se a escravatura indígena, por isso os paulistas organizavam as bandeiras - como organização militar, para prear indígenas mediante autorização da Câmara de Vereadores de São Vicente e São Paulo, sob a titulação de Guerra Justa.

O jovem Raposo sabia, por Manuel Preto, onde obter índios e não mediu sacrifícios para engendrar uma boa e lucrativa campanha para atacar Guayrá, vindo inclusive associar-se com o governador do Paraguai, Dom Luís de Céspedes y Xeria, para o bom êxito de seus propósitos contra as reduções jesuíticas do Guayrá com os milhares de índios, como pronta solução para os problemas de todos, sob pretexto de guerra justa.

O governador paraguaio D. Luis vendeu a causa Guayrá aos paulistas, depois seus sucessores se preocuparam apenas administrar problemas internos causados pelos jesuítas, entrantes em seu território, resguardando interesses pessoais e cientes que os luso-brasileiros não invadiriam o Paraguai.

Raposo Tavares montou uma organização militar pronta para guerra, sob identidade nacional e direção comum, ou seja, que a busca ao índio aldeado e a destruição das missões jesuíticas espanholas trariam, por consequência, a ampliação territorial brasileira dentro de um espaço vazio que urgia povoar. Nem portugueses nem espanhóis ignoravam isto.

Comumente o didatismo justifica as investidas de Raposo Tavares contra as reduções espanholas, como gesto voluntário, pela sua convicção de lutar pela integridade de terras portuguesas contra a Espanha, mas hoje cumpre entendimento que o bandeirante foi financiado por segmentos da sociedade portuguesa e autoridades interessadas no expansionismo territorial da colônia brasileira, em detrimento a Espanha.

Os defensores que Raposo era mercenário cabeça de entrada, citam dívidas fazendárias "do Mestre de Campo Antônio Raposo Tavares", das armas e munições que lhe foram entregues para o bom êxito das investidas contra os jesuítas das reduções espanholas. O historiador rondoniense Amizael Silva faz referência a citado documento, de 22 de fevereiro de 1665, do Provedor-Mor da Fazenda do Brasil, e acredita que "Na verdade, a Coroa Portuguesa financiara aquele desbravador, naturalmente com fins expansionistas" (Gomes Silva, 1999: Capítulo II, Os Bandeirantes).

Jovam Vilela da Silva informa que "Em 1628 Pe. Antonio Ruiz de Montoya já havia reclamado aos seus superiores que Raposo Tavares declarava que expulsaria as missões espanholas situadas ao sul do continente americano porque as terras pertenciam ao rei de Portugal e não ao da Espanha" (Vilela da Silva, A Lógica Portuguesa na Ocupação Urbana do Território Mato-Grossense).

Do mesmo Vilela da Silva, "De fato, deve-se considerar a hipótese de bandeirantes terem sido, secretamente, encorajados por ordens portuguesas para alargarem o território português na América, ao sul, até o Paraguai, a oeste até o Peru e de se utilizarem o Tietê, Rio São Francisco e do Amazonas e seus afluentes para estabelecerem passagens e zonas de povoamento, patenteiam-se".

Jaime Cortesão (na obra Raposo Tavares - ...) alinha-se com aqueles que acreditam que o avanço territorial do Brasil se deu pela não conformação portuguesa aos termos do Tordesilhas, num típico movimento nacionalista, sendo o ataque às reduções jesuíticas do Guayrá apenas a parte lucrativa de uma guerra, antes de tudo territorial.

O devotamento de Raposo às ordenanças das Câmaras de São Vicente e São Paulo demonstra bastante claro que fazia isto por dinheiro e prestígio, por exemplo, depois de exercer o cargo de "juiz ordinário da Vila de São Paulo, ganha novo e mais importante posto na Justiça da Colônia, passando a Ouvidor de toda a capitania de São Vicente" (Expedições Bandeirantes...). 

A razão de Raposo exercer um cargo de exclusiva nomeação de donatário de capitania pressupõe que o Conde de Monsanto, Donatário da Capitania de São Vicente, desejoso em aumentar domínios, tenha recorrido a Raposo Tavares pelo seu exacerbado nacionalismo e que insistia acreditar que as terras de Portugal não se findavam no imaginário de Tordesilhas.

Raposo provavelmente não suportava o domínio espanhol sobre Portugal e colônias, talvez daí a aspereza mútua entre o jesuíta espanhol Justo Mansilla [Mancilla] que chamou Raposo de 'vassalo rebelde' para obter deste a resposta "ide-vos vá daqui que estais em terras de Portugal." (Expedições Bandeirantes...), que alguns estudiosos entendem como ódio à Igreja. 

Contudo, foi cumprindo ordens das Câmaras de São Paulo e São Vicente, que o bandeirante reuniu quase todos os homens em idade de guerra de São Paulo e São Vicente, três mil brancos, três mil índios e aproximadamente mil mamelucos, formando não a maior bandeira ou entrada que até então se organizara em terra brasileiro, e sim verdadeiro exército paulista muito bem preparado e dividido em quatro colunas e sessenta e nove divisões organizadas e prontas para o ataque.

A despeito do ódio aos espanhóis ou à Igreja, senão a ambos, o interesse maior de Raposo sem dúvidas estava na motivação financeira, posto que aprisionar índios e torná-los escravos era altamente rentável. As leis da Espanha em contrário às ações bandeirantes não chegavam eficientes em terra brasileira, nem os clamores portugueses, a mando dos Senhores de Castela, tinham vigor em 'deixar livres os índios nascidos livres'.

Os missionários que mantinham índios sob sua jurisdição eram espanhóis ou vinculados à Ordem Jesuítica, que era espanhola e havia ganhado uma província inteira do Rei da Espanha, enquanto os luso-brasílicos não admitiam a dominação filipina, nem concordavam com as tantas terras doadas aos padres, terras com riquezas ainda por achar, já com possibilidade milionária de mais de cem mil índios, se vendidos como escravos por um bom dinheiro.

Alguns historiadores acreditam que somente assacam contra os bandeirantes, aqueles que se fiam exclusivamente em documentos espanhóis, desconhecendo que os jesuítas se apossavam do território sul-americano, do oeste a partir de Guayrá para o sul, através do expansionismo territorial, desde o princípio presente nas aspirações dos padres para o estabelecimento do estado teocrático católico, chocando-se com os luso-brasílicos igualmente expansionistas para além Tordesilhas, mais a captura do índio para o trabalho em suas lavouras.

—"Antônio Raposo Tavares, que fora denominado Segador de Satanás pelo padre Cláudio Reiyes - da redução de São Nicolau, armou com apetrechos de guerra, numerosa comitiva e mais cadeias, grilhões, esporas, coleiras, algemas e correntes de oito a dez metros de comprimento, com dez ou mais gargalheiras presas e iniciou percorrer os altiplanos da Bolívia. No finalzinho da primeira metade do século XVII, atingiria o rio Mamoré e em seguida o Madeira, pelo qual chegaria ao Amazonas, e por ele seguindo até o Grão-Pará." (Gomes Silva, 1999: ...). 

A 'Guerra contra Guayrá' estava prevista para 1627, os paulistas todos incitados por "Raposo Tavares, que conta, então, 28 anos de idade, mora em Quitaúna e, com Paulo do Amaral, incita a população à revolta, concitando-a a integrar-se nas hostes vingadoras. Os preparativos vão adiantados, quando a Câmara toma conhecimento deles e irritase, não encontrando outra solução senão esta: prender os rebeldes" (Belmonte - pseudônimo de Benedito Carneiro Bastos Barreto, apud Novo Milênio: Belmonte, No tempo dos bandeirantes, 1948 - L 23: 2); e, dentre discussões e pareceres o autor destacou:

—"Os senhores vereadores não desconhecem as invasões dos hispanos de Vila Rica. Sabem que, escorados no meridiano de Tordesilhas, os missionários castelhanos vão se apossando das terras, semeando reduções pelo vale do Paranapanema, até as proximidades de São Paulo, com o indisfarçável objetivo de estabelecer uma conquista cimentada por hábil interdito retinendaes possessionis".

Na sessão camarária de 02 de outubro de 1627, Cosme da Silva, Procurador do Conselho da Câmara de São Paulo, no uso da palavra requereu:

—"(...) que avizassem o capitam-mór, por carta e por requerimento, de como os ispanóis de villa rica e mais povoações vinhão dentro das terras da crôa de portugall e cada vez se vinhão aposando mais delles..."(...)."Há, todavia, quem discorde do estranho comodismo dos 'senhores do Conselho' eleitos para esse ano de 1627. Entre a legião dos endemoniados "rebeldes", estão dois sertanistas que, mais tarde, se revelarão, agigantando-se: Paulo do Amaral e Antônio Raposo Tavares. Às ocultas, os dois grandes sertanistas procuram formar uma poderosa bandeira para barrar a audaciosa infiltração espanhola, vinda do Sul para o Norte e de Oeste para Leste com o claro, evidente, indissimulável intuito de impedir a expansão geográfica do Brasil, teoricamente contida pela linha tordesilhana."

Informa Belmonte que "o mesmíssimo procurador Cosme da Silva", na oportunidade, " requereu aos ofisiais que se dirigisen ao ouvidor, e lhe requeresen que fosse prender a ãt.º raposo tavares e a paullo do amarall por seren amotinadores deste povo e mandaren allevantar gente para iren ao sertam."

Por fim o desfecho dado:

—"Presos os dois 'amotinadores', fracassa a grande arremetida dos paulistas contra os espanhóis da província do Guayrá. A Câmara, certamente, exulta e volta, tranquilamente, às suas comodidades, embora de olho pregado na população que agora, mais que nunca, freme de indignação e, de punhos cerrados, espera..."

Mas a Guerra do Guayrá fora apenas adiada.

 

09.5. Etnocídio e a escravização indígena

Produzidos os motivos da guerra, em dezembro de 1628 as missões jesuíticas sofriam os primeiros ataques dos bandeirantes, sem o apoio do governo de Assunção que lhes requisitou antes as armas e munições, bem como determinou a retirada dos soldados paraguaios as sentinelas das reduções e das cidades militares de Vila Rica e Jesus Maria.

A grande desvantagem dos reduzidos, no enfrentamento, foi mesmo falta de armas que D. Luis de Céspedes y Xeria fez retirar e assim as cidades planejadas, que deviam bloquear o caminho dos portugueses para a América Espanhola, resistiram bem pouco vindo cair uma a uma, primeiro San Antonio a 30 de janeiro de 1629, depois São Miguel, Jesus Maria, Encarnacion e as adjacentes (Expedições Bandeirantes...), enquanto outra frente atacava aldeamentos no Vale Iguaçu (Maack, 2002: 72) e uma terceira pelo Paranapanema, às exceções de Loreto e Santo Inácio, fazendo com que muitos índios fugissem com seus padres em direção ao Tape [Rio Grande do Sul], Itatim [ao sul de Mato Grosso - do Sul] e Paraguai.

A resistência maior dos missioneiros ocorrera em Ciudad Real Del Guayrá e Vila Rica Del Espírito Santo, onde a quarta divisão do exército de Raposo foi rechaçada dos intentos diante daquelas fortalezas, morrendo dois jesuítas em Ciudad Real.

Aparentemente os bandeirantes não contavam com tamanha reação, obrigados à fuga atabalhoada pelas matas até encontrar-se com a frente de ataque às reduções mais próximas do Paranapanema, também obrigada retroceder diante do avanço das tropas inimigas. Santo Inácio e Loreto, por ora, estavam a salvos.

Temendo retorno dos bandeirantes às margens do rio Paranapanema, para atacar Santo Inácio e Nossa Senhora do Loreto, padre Antonio Ruiz de Montoya e outros seis jesuítas prepararam o êxodo mais dramático de índios da América do Sul, em centenas de canoas e jangadas para fugir do branco avassalador, num episódio assim descrito por Montoya:

—"Acabamos as hóstias consagradas, e fizemos conduzir os santos óleos e os nossos pobres haveres para a beira do rio, onde embarcamos nas jangadas. Do mesmo modo as gentes também meteram nas jangadas ou nas canoas as suas pobres coisas, conforme já se tinha predisposto. Os homens que se haviam aprontado, os moços, os rapazes, as mulheres, as velhas, as moças, as meninas, todos juntos com as crianças, encaminharam-se para o rio. A aldeia inteira [se] levantou sem ficar nem ao menos uma pessoa. Mandamos retirar das sepulturas os corpos dos três padres, nossos companheiros, para levá-los conosco; trancamos bem a porta da Igreja para evitar que ali entrassem animais. Parecia um dia de juízo aquele dia em que fizemos a mudança." (Padre Montoya, apud Jorge Junior, 20 de agosto de 1967).

E Jorge Junior arremata:

—"E, para sempre, das margens do Paranapanema, partiram mais de 12 mil indígenas, descendo rios, em tormentosa retirada, rumo a uma nova esperança em terras localizadas entre os rios Paraná e Uruguai. Depois de longa e penosa viagem, sofrendo acidentes, doenças, desistências e mortes, chegaram ao seu destino pouco mais de quatro mil retirantes. (...). Loreto e Santo Inácio, abandonadas, sofreram a ação destruidora de 300 anos. Os telhados caíram, as paredes de taipa se desfizeram e a vegetação luxuriante, qual pano de boca de teatro, desceu vagarosa como final do imenso drama".

No dia 1º de maio de 1629, depois de dez meses de sertão e guerra, vitoriosos, porém exaustos, os paulistas voltaram a Piratininga após destruir umas tantas missões, com vinte mil índios capturados e vendidos como escravos, dez mil deles de uma só mão para a Bahia. Justo Mansilla [Mancilla] e Simão Mazzeta, os jesuítas que acompanharam os índios que iam para o cativeiro em São Paulo, foram os autores da "Relación de los Agravios", peça preciosa para a reconstituição da expedição, ainda que nada tenha produzido para punir culpados de guerra (Mansilla e Mazzeta, Relación de los Agravios).

Em atenção aos jesuítas, o Governador "Capitão-Mor do Brasil" determinou que todos os índios capturados no Guayrá fossem libertos, no risível despacho "faça-se imediata justiça", quando não havia mais índios para libertação, todos já vendidos para a escravatura.

Em 1631, Raposo à frente de seu exército retorna ao Guayrá e bate de frente com Vila Rica do Espírito Santo - cidade militar, sem êxito aparente para retornar novamente em 1632 e destruí-la definitivamente. 

Conta Maack (2002: 72), que "dos 100 mil índios convertidos existentes na zona desta redução, 15 mil foram mortos e 60 mil vendidos como escravos em São Paulo.", noticiando inclusive que o preço de cada escravo "devido à oferta exagerada, baixou de Rs 100$000 para Rs 20$000."

A Ciudad Real Del Guayrá foi arrasada somente no ano de 1638. Para os padres jesuítas o sonho de um estado teocrático na América do Sul não se findou com a destruição de Guayrá. Desde que traídos por D. Luis Céspedes e vencidos por Raposo Tavares voltaram-se para o sul, onde já se firmavam algumas reduções, desde 1626, como novo projeto missioneiro em terras também por concessão do reino espanhol. Raposo foi ao encalço deles e uma das frentes de suas tropas protagonizou o acontecimento:

—"No dia de São Francisco Xavier (3 de dezembro de 637), estando celebrando a festa com missa e sermão, cento e quarenta paulistas com cento e cinqüenta tupis, todos muito bem armados de escopetas, vestido de escupis, que são ao modo de dalmáticas estofadas de algodão, com que vestido o soldado de pés à cabeça peleja seguro das setas, a som de caixa, bandeira tendida e ordem militar, entraram pelo povoado, e sem aguardar razões, acometendo a igreja, disparando seus mosquetes.

Pelejaram seis horas, desde as oito da manhã até as duas da tarde.

Visto pelo inimigo o valor dos cercados e que os mortos seus eram muitos, determinou queimar a igreja, aonde se acolhera a gente. Por três vezes tocaram-lhe fogo que foi apagado, mas à quarta começou a palha a arder, e os refugiados viram-se obrigados a sair. Abriram um postigo e saindo por ele a modo de rebanho de ovelhas que sai do curral para o pasto, com espadas, machetes e alfanjes lhes derribavam cabeças, truncavam braços, desjarretavam pernas, atravessaram corpos. Provavam os aços de seus alfanjes em rachar os meninos em duas partes, abrir-lhes as cabeças e despedaçar-lhes os membros.

Compensará tais horrores a consideração de que, por favor, dos bandeirantes pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?" (Capistrano de Abreu, (...): 59). 

A grande aventura jesuítica definitivamente encerrou-se quando seus padres foram expulsos da América portuguesa e espanhola, em 1759/1760 e 1768 respectivamente, deixando suas trinta e três reduções e uma população ainda superior a cem mil habitantes, em partes de terras hoje pertencentes ao Uruguai, Paraguai, Argentina e sul do Brasil.

Jorge Junior estima, fundamentado em documentos jesuíticos e de historiadores, que em todo século XVII mais de trezentos mil nativos, da margem esquerda do Rio Paranapanema ao Rio Grande do Sul, foram aprisionados e escravizados (20/08/1967). 

Para Meliá, numa estimativa talvez exagerada, seriam mais de um milhão de indivíduos escravizados, contados aí os índios capturados pelos castelhanos - os 'encomienderos' (Meliá, 1969).

 

09.6. Um vazio de gentes no sertão - consequências das entradas e bandeiras

Darcy Ribeiro entendia as missões jesuíticas como a experiência ou "a tentativa mais bem sucedida da Igreja Católica para cristianizar e assegurar um refúgio às populações indígenas, ameaçadas de absorção ou escravização pelos diversos núcleos de descendentes de povoadores europeus, para organizá-las em novas bases, capazes de garantir sua subsistência e seu progresso" (Ribeiro, As Américas e a Civilização, 1988).

O colonizador, português ou espanhol, acreditava a redução jesuítica como forma de preparar o índio para a mão de obra a favor do conquistador. O índio aldeado encontrava melhor preço de mercado porque acostumados ao trabalho agrícola, em outras artes de ofício e, sobretudo, dóceis; isso despertava a cobiça dos bandeirantes que resolveram atacar Guayrá onde à disposição encontravam-se dezenas de milhares de nativos para preamento.

Aconteceu a guerra e a vitória bandeirante trouxe como resultado, o aprisionamento de milhares de índios, a tomada territorial pela conquista e, posteriormente, ocupação daquelas terras de Espanha, tudo a se processar de acordo com as necessidades econômicas de Portugal.

O bandeirismo paulista envolvido na Guerra do Guayrá era de apresamento; com a fuga dos jesuítas e índios sobreviventes às regiões do Tape e Itatim, para lá se deslocaram os bandeirantes deixando toda bacia do Paranapanema, numa espécie de recesso de presenças do homem branco, por quase um século. Isto significou novas entradas em terras espanholas e futuras anexações.

As terras invadidas tornaram-se paulistas, consequentemente portuguesas, pelo uso da força, ainda que Portugal e colônias estivessem sob domínio espanhol. A ousadia paulista e a vitória em Guayrá fizeram com que o rei espanhol, e as autoridades portuguesas de plantão, viessem a negociar rápido para evitar a independência paulista e o fracionamento territorial, a partir do rio Tiete até o Paraná e por este descendo até o rio da Prata, colocando em risco outras regiões pertencentes à Espanha.

A região do Guayrá então sob domínio português, com referida conquista, apenas despertou interesse de fixação humana quando da descoberta do ouro no litoral paranaense, em Paranaguá, ano de 1648, depois outros povoados como Morretes, Antonina e Guaratuba, voltando-se para Curitiba em 1668, sendo estes os primeiros núcleos sob dominação portuguesa como causas de penetração em terras do Paraná espanhol. Não existindo ouro em abundância, o local ficou entregue a uns poucos agricultores de subsistência, já com garantia que os luso-brasílicos não mais dali arredariam pé daquelas paragens, "como desejo de efetivar a conquista da terra" (Tapajós, 1963: 95), cada vez mais com as vitórias bandeirantes contra as missões jesuíticas do Tape.

A tomada do Guayrá, ou, o sucesso de Raposo, sem dúvidas incentivou demais entradas em outras regiões além Tordesilhas, sendo ele próprio a realizar as principais delas, de sul a norte, centro-oeste e nordeste, parecendo obedecer a ordens superiores para assegurar apossamentos dos atuais estados, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, inclusive chegando com sua expedição até o Amazonas, além de ter lutado contra os holandeses na Bahia e em Pernambuco.

Tamanhas ousadias deram ao Brasil [Portugal] forças necessárias para o posterior recuo do Tratado de Tordesilhas, e assim acrescer partes territoriais pelo tratado de Madri em 1750, o reformador do Tordesilhas.

A própria revolução nacionalista portuguesa de 1640, que conduziu D. João IV ao trono de Portugal, depois de sessenta anos de dominação espanhola, sem dúvidas teve sua inspiração na expulsão dos espanhóis do território avançado pelos bandeirantes e entradistas entre 1628/1638.

No Brasil, particularmente São Paulo, já se formava, então, a consciência de nacionalidade como grupo étnico-cultural amalgamada de raças e culturas diversas, a despertar sentimento de superioridade ao reinol espanhol em direito a terra, quando em andamento também o antagonismo entre o nascido brasileiro com o elemento português, desperto sobremaneira após a expulsão holandesa do território brasileiro.

Como conclusão pode-se dizer que os bandeirantes, no aprisionamento ao indígena, desempenharam importante papel nessa expansão territorial, desbravando os sertões além do Tratado de Tordesilhas, a culminar numa série de outros tratados de limites entre Portugal e Espanha, como os de 'Utrecht', em 1715, de 'Madrid' - 1750 e suspenso pelo 'Tratado de El Prado' - 1761, o de 'Santo Ildefonso' - 1777 e, finalmente, o de 'Badajoz' - 1801.

Após esses tratados, a área brasileira mais que triplicou, dos 2.500.000 km2 - pelo Tordesilhas, para mais de 8.000.000 de km2, quase a superfície atual estabelecida pelo direito fundamentado na ocupação efetiva de longo prazo, e independente de outro qualquer título - 'uti possidetis', ou seja, uma área pertence a quem efetivamente a ocupa.

Do elemento indígena, sobrevivente de tantos massacres e apresamentos, não se sabe o que realmente lhes aconteceu, talvez parte incorporada à sociedade paraguaia, outra à brasileira que se formava ao litoral paranaense, alguma reintegrada aos parentes selvagens, enquanto a maioria se transformou em destroços tribais, distanciando-se ainda mais de seus vínculos originais.

Para muitos especialistas, foram estes os índios encontrados, à exceção caingangue, em meados do século XIX, por habitantes embrenhados nas matas adiante da Serra de Botucatu, entre os rios Feio/Aguapeí e Paranapanema, favorecidos pelo declínio do bandeirismo de apresamento, desde a reconquista de Angola de mãos holandesas, em 1648, com a normalização do abastecimento de escravos africanos; a expulsão dos holandeses do nordeste brasileiro e a crise da economia açucareira, fatores todos determinantes para desmotivar a caça ao índio (Donato, 1985: 33).

Outro importante motivo à sobrevida indígena no oeste paulista foi que às bandeiras de apresamento sucederam as de prospecção, e a região nada tinha a oferecer a esta nova onda. Aos tais índios bastava tão somente não se colocar às proximidades do Tiete, Paraná e Paranapanema, onde ocorria maior tráfego de brancos rumo aos grandes sertões do Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais, onde se descobriram riquezas minerais de grande exploração.

Por conseguinte, a chegada de bandeirantes e entradistas nas regiões auríferas do centro-oeste brasileiro, provocaram êxodo de nativos em direção ao território paulista, nas matarias pelos lados de Bauru, Lençóis, além da serra de Agudos, na bacia do Pardo, nos campos de Avaré, nas vertentes do Paranapanema e do outro lado da Serra de Botucatu, com certa distância das povoações que já surgiam a partir de Sorocaba.

Entende-se que estes grupos indígenas se expandiram progressivamente, tornaram-se constantes, maiores e cada vez mais ameaçadores, ainda que elementos fugidios diante da presença branca.

O avanço do branco, além de Itapetininga, em direção a Botucatu, promoveu incidentes com os índios da região, daí o surgimento das bandeiras de contrato, como exemplo em 1680, quando o capitão-mor Jorge Correa foi contratado, oficialmente, para caçar índios bravios que estavam nas matas desde as vertentes do Paranapanema, em estado de selvageria. Correa esteve na Serra de Botucatu, percorreu campos do Pardo e Avaré (Taunay, História Geral das Bandeiras Paulistas, Tomo III: 328), com práticas predatórias contra indígenas.

Outra entrada, no ano de 1706, chefiada por João Pereira de Souza, passou pela região de Botucatu em perseguição ao índio com ordens para extermínio total. "João Pereira (...) consegue ainda ser mais duro que seus predecessores. Passa por onde hoje se encontra o centro da cidade [Botucatu] e praticamente dizima todos os índios da região" (Bicudo, 2009).

Sem a incômoda presença indígena, as terras de Guareí ao alto da Serra de Botucatu, tornaram-se propriedades de sesmeiros, dentre eles o capitão-mor Antonio Caetano Pinto Coelho, capitão Antonio Antunes Maciel e o capitão José Campos Bicudo, destacados pelas doações feitas aos padres jesuítas para a instalação de uma fazenda para criação de gado e promoção agrícola. 

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