domingo, 20 de dezembro de 2009

- 'Frei' Manoel - 'O homem-deus' do sertão

-1. Quem foi e de onde chegou o 'Frei Manoel'
Francisco Izabel ou Joaquim Catirina, autointitulado 'Frei Manoel', na sua época foi o 'homem-deus' 
do sertão. Imagem extraída da publicação 'Eu no Sertão' - de Valdomiro Silveira 
DOSP 15/12/1982: 9.
Não se sabe exatamente quando nem onde o nortista Francisco Izabel, tido desertor da Armada [Marinha] ou Exército, recebeu o chamado divino para o ministério de salvação, pois que ele já surge em Santa Cruz do Rio Pardo autointitulado 'Frei Manoel' e pregador pronto, por volta de 1890, para conquistar o sertão Paranapanema adiante. Teria vindo dos lados do Paraná, primeiro em Piraju, para anunciar o fim dos tempos, a separação do trigo do joio, e o estabelecimento do reino divino na terra (Nogueira Cobra, 1923: 108).
O literato e Promotor Público Dr. Valdomiro Silveira, que exerceu a função pública em Santa Cruz do Rio Pardo, entre os anos de 1895/1898, informou que 'Frei Manoel' residira por anos em Botucatu, na região de Araquá, onde conhecido como Joaquim Catirina (Valdomiro Silveira, Eu no Sertão, in Suplemento Leitura, DOSP, ano I nº 7, dezembro de 1982: 8-9).
Ainda de acordo com Silveira, Catirina chegou a Santa Cruz do Rio Pardo à procura de um sobrinho que teria sido agregado na família do Capitão Galdino Carlos da Silveira. Catirina impressionou o Capitão Galdino, Escrivão de Órfãos em Santa Cruz do Rio Pardo (Almanach da Provincia de São Paulo 1886: 479), e Capitão da Reserva da Guarda Nacional (DOU, Seção 1, 03/11/1893: 2).
Não tardou e o místico assentou-se no Ribeirão Grande, onde outrora a Fazenda do Padre João Domingos Figueira, para daí ganhar o sertão adiante, São Pedro do Turvo e Campos Novos Paulista, sempre cercado de multidão, com centenas ou, talvez exageradamente, até mil e seiscentos seguidores (Silveira).
A história, em relatos conflitantes e às vezes díspares, apresentou-o como homem de estatura mediana, cabelos encrespados, barba hirta e negra a cobrir-lhe o rosto saliente e precocemente enrugado; trajava-se de longa túnica sobre roupas comuns, valia-se de um velho chapéu esverdeado [pelo tempo de uso] e calçava alpercatas. Fumante, os fiéis disputavam as pontas de cigarro que tocavam os ditos lábios santos (Giovannetti, 1943: 77-81).
Percorreu regiões de Piraju, Avaré, Santa Cruz do Rio Pardo, São Pedro do Turvo e Campos Novos Paulista, onde o fazendeiro Manoel José lhe ofereceu lugar para abarracamento, com seus seguidores, à margem direita do Rio Novo, bem próximo do povoado.
Dentre os acompanhantes e admiradores de 'Frei Manoel', em Campos Novos, Amador Nogueira Cobra menciona certo jovem, culto, "formado pela Faculdade de Direito de S. Paulo. Moço eloqüente, promotor público da comarca, tomava a palavra freqüentemente e dirigia-se aos circumstantes que em torno do abarracamento se reuniam a ver o frei. Mostrava quaes as virtudes deste, seu dom de prophecia e, sobre tudo, o poder de tornar o corpo de mortal invulnerável às armas de fogo, de corte" (1923: 108 / 109).

2. Pregador carismático
As pregações de 'Frei Manoel' eram vibrantes, convincentes e seguidos de admiradores empolgados e em números crescentes, extasiados pelas palavras do santo, seus vaticínios e demonstrações físicas de homem ungido, contra quem nenhum malefício podia atingir.
Apesar de população esparsa no sertão Paranapanema, o número de seguidores impressionava e chegava a quinhentos fiéis, inquietando as autoridades locais que o denunciaram ao poder central. Giovannetti disse que 'Frei Manoel' conquistava corações dos humildes, impressionava aqueles que o ouviam e quando alguém o encontrava nalguma caminhada dizia "Eu temo o Deus que passa!" (1943: 78).
O progresso do místico foi rápido demais, já vinham gentes de outros rincões atraídos pelo sucesso do santo, em suas palestras abertas geralmente depois de entrar às virgens, num compartimento fechado, somente permitido aos iniciados, certamente ele só e as jovens consagradas. E assim, 'Frei Manoel' em pouco tempo ganhou tantos adeptos, separou famílias, adquiriu riquezas doadas pelos fiéis, mas cometeu o erro de permanecer no local maior período que o necessário, subestimando a inteligência de todos e a capacidade de percepção do homem do sertão.
O autor Giovannetti mencionou tais ocorrências como preocupantes:
—"Os agricultores abandonavam os campos para seguir o Monge nas longas procissões. Ninguém cuidava mais em fazer plantações e, a vida, ficou profundamente perturbada. Roças sem queimar, terras sem plantar: o horizonte da zona Campos-novense apresentava sinais de tristeza e de fome. Foi um ano de crise espantosa. A lenda do fantástico homem ultrapassava os limites da antiga Vila de Campos Novos, e espalhava-se em Salto Grande, Platina, Conceição de Monte Alegre, até aos últimos moradores de Anhumas e Jaguaretê. Os fanáticos cresciam (...). A Fazenda Manoel José transformou-se numa verdadeira Meca" (1943: 79).
Nogueira Cobra descreveu o frei como embusteiro, autor de falsos milagres dados aos seguidores, como o anuncio do apagar momentâneo do sol, de fechar o corpo contra armas brancas e de fogo, imunidade às moléstias e promoções de curas (1923: 113).
O autodenominado frei certamente tinha conhecimento prévio de eclipse solar, sabia fazer munição de festim e habilidade em manusear navalha parecendo passar a lâmina afiada pelo corpo, seu o de algum assistente, sem perigos de danos. Também aparentava conhecer o empirismo médico e trazia consigo sempre o herbário para diagnosticar as principais doenças e promover as curas, conforme dados colhidos dos autores Nogueira Cobra, Giovannetti e dos contatos com descendentes daqueles que conviveram ou ouviram falar do místico.
'Frei Manoel', diziam, tinha suas virgens consagradas com as quais mantinha, na qualidade de ungido, certos deveres sexuais para o sucesso da comunidade, realizações de ritos em contatar os espirituais, imunizações contra enfermidades ou fechamentos de corpos. Uma das virgens certamente traria ao sertão, em breve, o 'filho daquele deus'.
Alguns observadores não adeptos já se intrigavam que 'Frei Manoel' fazia pregações, curas e certas demonstrações de poder, em público, mas fechamentos de corpo ou imunizações a doenças, por exemplo, apenas em particular com a pessoa interessada, homem ou mulher, para os responsos e certos rituais secretos, já colocados por suspeitos.
Ainda Nogueira Cobra descreve. numa clara insinuação de práticas aberrativas e homossexuais do profeta, que:
—"Não demorou muito tempo descobrir-se abertamente a impostura que se encerrava no processo de se tornar invulnerável o corpo às armas e às doenças (...). Aquela extranha creatura, quando submettia o paciente à demonstração de que a navalha não cortava, fazia-o publicamente. Porém não procedia à outra prova, rodeava-se de cautelas e precauções e fechava-se com aquelle, em praticas mysteriosas; estas concluídas, retirava-se do compartimento reservado, onde passava o dia, quase todo, reclinado em tarima; elle não descansava desse trabalho, dessa espécie de vaccinação geral contra todas as moléstias conhecidas, que afligiam a humanidade, e as que ainda podessem apparecer: noite e dia applicava seu systema" (1923: 110 e 111).

3. As denúncias contra o 'Frei Manoel'
As mirabolâncias políticas de 'Frei Manoel' chamavam atenções do governo, pelos seus discursos revolucionários, poder de convencimento, desobediência civil e práticas subversivas; o 'frei' era declarado monarquista.
Também as práticas religiosas já causam problemas ao 'frei' em Campos Novos do Paranapanema:
—"Achava-se alli advogando um bacharel intelligente, ainda moço [Dr. Affonso Gonçalves Fraga] e de acção, que instigou os habitantes a tomarem armas e enxotarem o falso propheta com os seus para fora do sertão. Secundou-o o chefe político [Coronel Sanches] no plano de combate. Reuniu-se um grupo de homens decididos que se apresentaram para a lucta" (Nogueira Cobra, 1923: 111 e nota 1 de rodapé).
Ocorrera, diziam, o desvirtuamento de uma virgem, filha de um poderoso do lugar ou aliado, prometida a um doutor.
O diário 'Correio Paulistano' em sua edição de 24 de maio de 1892 publicou o perfil de 'Frei Manoel':
—"Pessoa vinda de S. Pedro do Turvo, relata-nos o facto seguinte:
Existe actualmente naquella cidade um missionario bilontra que se veste de capuchinho, apregoando a todos os que lhe ouvem, ser um deus, aposotolo santo ou cousa que o valha.
O homem conseguiu captar de tal sorte a sympathia da população que tem atrahido para si cerca de quinhentas pessoas inteiramente fanatisadas.
O falso capuchinho baptisa, faz casamentos, faz sermão, diz missas, pinta o diabo ou o simão, com um desplante extraordinario.
Mas a bilontragem [pilantragem] do padreco não fica nisso.
O homem tem feito barulho, provocando desordens na localidade, e mesmo conmettendo [commettendo] os crimes mais revoltantes.
O falso missionario denomina-se 'Frei Manoel'-
Ainda ha alguns dias, por causa do referido missionario, que se aliou a um valdevinos daquella localidade, deu-se terrivel conflicto, resultando delle mortes e ferimentos.
O povo fugiu espavorido da localidade e deixou o missionario senhor da mesma.
Para esse caso gravissimo chamamos a attenção das auctoridades competentes."
Se alguma outra denúncia não se sabe, mas o Ministro da Guerra em telegrama ao governo paulista determinou providências, e o 7º Batalhão do Estado seguiu da Capital com destino a São Pedro do Turvo, para restabelecimento da ordem perturbada "por um pseudo missionário que, explorando a religião, tem fanatisado cerca de quinhentas pessoas" (Correio Paulistano, 26/05/1892: 1).
Nessa reportagem de 26 de maio de 1892, o Correio Paulistano informava, firmado em denúncia ou suspeita, que "esse missionário não passa de um cigano disfarçado em capuchinho e que tem commettido os mais abominaveis crimes naquella localidade".

35.11.4. A morte do 'Frei Manoel'
O Governo do Estado alertado do que se passava na região de Campos Novos, urgente encaminhou vinte soldados sob comando de um tenente (Rios, 2004: 21), para a captura ou morte de 'Frei Manoel' Manoel e seus asseclas, e dispersamento dos fanáticos.
O 'frei' percebeu que o perigo lhe rondava e, cercado dos seus mais próximos, retirou-se de Campos Novos numa fuga improvisada para São Pedro do Turvo, onde o aguardava outro seu inimigo, os "soldados da Polícia" segundo Giovannetti (1943: 81), ou foi "alcançado pelos civis que no seu encalço partiram" conforme Amador Nogueira Cobra (1923: 112), de qualquer forma o falso 'frei' foi surpreendido pelos inimigos, sem tempo de reagir nem se embrenhar mata adentro, morto por um tiro certeiro de carabina (Giovannetti) senão vários tiros (Amador Cobra).
O destino final do profeta também causa divergências irreconciliáveis entre os historiadores. Bruno Giovannetti informou:
—"Era o mez de Setembro (...). O governo do Estado avisado do que se passava em Campos Novos, mandou soldados da Polícia para debandar os fanáticos e punir o autor de tamanha desorganização social. O encontro deu-se em São Pedro. Os soldados esperavam provavelmente encontrar resistência, porque o bando de aldeães estava armado. Frei Manoel nem sequer pensou em reagir. O Deus Homem, tombou ao chão, matado por bala de carabina" (1943: 80).
Nogueira Cobra comentou:
—"Em S. Pedro, para onde se dirigiu antes de vir a força do governo (...). Prevendo o desfecho de sua vida de aventuras, fugiu de S. Pedro para o matto, do lado do Ribeirão Bonito, e alli foi alcançado pelos civis que no seu encalço partiram. Recebendo vários tiros, cahiu morto e junto delle o seu mais dedicado servidor" (1923: 112).
Nogueira Cobra advogava em Campos Novos desde 1909, portanto bastante próximo aos fatos, mas não diz a data dos acontecimentos e nem o mês, apenas referência ao ano, 1892, além da versão que 'Frei Manoel' fora morto por populares instigados contra ele.
O Promotor e literato Valdomiro Silveira, referência citada, deu conta que 'Frei Manoel' foi surpreendido por policiais e bate paus, numa tosca residência, e ali mesmo morto e seus principais auxiliares, entre eles Francisco Garcia - o Chico Gago autodenominado São Sebastião, presos e condenados pelo Tribunal do Juri, e então escoltados para a Capital:
—"[E] estiveram dias na penitenciária, donde fugiram facilmente. E São Sebastião, que por ultimo foi condenado e um pouco depois remetido para São Paulo, esse nem chegou a meio caminho: subverteu-se no Turvo, alta noite, escapando aos soldados que o vinham conduzindo, embora a noite fosse escura por demais e o rio crescesse de monte a monte..." (op.cit, 9).
Disse José Ricardo que na noite de dez de junho de 1892 soldados da Força Pública de São Paulo estavam em Santa Cruz do Rio Pardo, de onde partiriam na manhã seguinte para São Pedro do Turvo, com a missão de capturar o frei. Na mesma noite de dez de junho, o então jovem Antonio Evangelista da Silva, o futuro Coronel Tonico Lista, desaviu-se com dois soldados daquele batalhão e matou um e feriu gravemente outro na zona do meretrício. Os acontecimentos determinaram a busca do assassino, corre-corres, acertos e fuga, e o batalhão não seguiu rumo a São Pedro, no dia seguinte, também porque souberam já morto o 'Frei Manoel' (Rios, 2004: 21).
O Correio Paulistano (12/06/1892: 1) noticiou a morte de Frei Manoel:
—"São Pedro do Turvo
A respeito dos factos gravissimos que se deram naquella localidade e que foram provocados por um supposto frade, sabemos ter sido o mesmo victimado pelo povo que desde muito havia sido ludibriado em suas crenças religiosas e escandálisado pelos crimes commettidos pelo falso missionario
Seu companheiro de apostolado, o celebre Dr. Barros, conseguiu fugir á vindicta popular."
Os autores ainda desconhecem quem o jovem promotor público, Barros, seguidor/defensor do 'frei Manoel'